“Há um menino, há um moleque, morando sempre no meu coração...” Era um menino que gostava de bola, de pipa, de geladinho,
de correr pelo quintal e que num momento de abastança ganhou uma bicicleta e
fez do mesmo quintal um mundo a ser desbravado sob duas rodas, contudo,
aprendeu cedo que o portão era o instrumento limitador da sua liberdade.
Cresceu
o menino. Hoje um homem que atravessou o portão e se deparou com instrumentos
muito mais cruéis pra limitar ou anular sua liberdade, do que aquele simples
portão. Hoje vestido de sobriedade, pouco mostra os dentes, já que na cultura
popular: preto que muito ri ta de onda é malandro ou coisa do gênero. Do
quintal a ser desbravado, ficou a ilusão de liberdade.
Quis
se dedicar aos estudos, mas trabalhar se fez imperioso. Foi ajudante de
pedreiro, entregador da venda do seu Manoel, limpou para brisa no farol, fez
carreto na feira, entre outros biscates. Nos poucos intervalos que achava lia
umas revistas velhas, pra não se desacostumar das letras. Sim porque com muito
esforço terminou 2º grau, com números era bom, aprendera novo fazer o troco quando
nas idas e vindas à venda, pra sua velha e negra mãe.
Passou longe do crime ou porque tinha medo de morrer ou porque queria postergar a morte. Desde cedo ouvira falar que na linha de frente da violência estavam os meninos pretos, então pelo sim pelo não era melhor andar dentro das linhas estabelecidas. Bem via os outros meninos desfilando de Nike, Onbongo, algumas vezes considerava a possibilidade, mas imediatamente se dava conta que confirmar as estatísticas não era uma boa ideia.
Virou
doutor, mas continua sendo parado pela policia e evita chegar em casa depois
das 23 horas.
Quisera
eu essa historieta fosse uma ficção, ledo engano ela narra a vida de Joaquins,
Joses, Albertos e tantos meninos que vivem nas grandes capitais onde a policia
entra sem avisar ou nos rincões do país
onde a fome também inibe a possibilidade de sonhar.
Como
já se cantava nos anos noventa “era só
mais um Silva que a estrela não brilha...” na verdade hoje em dia, essa
estrela não precisa brilhar, ela só precisa permanecer viva e não no céu, mais
em terra firme, onde seus sonhos possam ser concretizados ou pelo menos
sonhados.
Nos
dois últimos meses os casos de racismo e violência contra mulheres e jovens
negros, tomaram conta não só das delegacias, mas das capas de revistas e dos
programas de TV: a revista Trip pergunta onde esteve a beleza da mulher negra,
a TPM de como é difícil ser mulher negra no Brasil, a Placar fala do
assassinato envolvendo o goleiro Bruno e sua namorada Elisa Samudio, as redes
sociais bombaram sobre o caso Claudia, (aquela mulher que teve o corpo
arrastado por um carro de policia), Regina Casé em seu último programa expõe
toda dor de seu elenco, após um de seus bailarinos ter sido brutalmente
assassinado e a cereja do bolo, Jô Soares distribui bananas na abertura do seu programa
em alusão a atitude do jogador Daniel Alves, vitima de racismo em campo.Para tudo!
Eu vou descer pra não ficar aqui mais muitas laudas, falando de quantos
morreram e quantos ainda vão morrer enquanto a gente banaliza a violência
transformando-a em espetáculo.
A
pergunta que me suscita a alma, que inquieta minha ignorância é o que mais
precisa acontecer pra gente acordar e perceber que vivemos números de morte
maiores do que na II Guerra Mundial, que a guerrilha esta instaurada e que o
conjunto da sociedade esta em risco. A vida perdeu o sentido e o valor, ou
melhor, a vida daqueles que são denominados por não brancos, ou seja, quando o
recorte das mortes recai sobre gênero e raça, os dados são inacreditáveis.
A
sociedade brasileira tem trabalhado com a lógica fabril do capitalismo em
relação às vidas que são ceifadas por conta do racismo e da violência. Claro
que a ausência do poder publico, traduzido em lazer, esporte, educação, saúde e
ações afirmativas também é responsável pela situação de calamidade que o Brasil
vive em relação ao aumento desenfreado da violência, mas também é preciso levar
em consideração que essa discussão não esta na agenda do estado enquanto
elemento norteador do seu crescimento, nem na pauta das discussões sociais
enquanto elemento que compõe uma serie de outros assuntos prioritários de
reivindicações.
Então
eu pergunto: Aonde falaremos sobre isso? Nos velórios. Nas missas de 7º Dia.
Nas passeatas de protesto. Com a fé característica do povo brasileiro, de que
dias melhores virão, como diria minha mãe.
Faz
parte, mas eu particularmente preferiria debater esse assunto em âmbito
nacional, nas esferas federal, estadual e municipal, com ministério da justiça
e secretarias de segurança publica, com a SEPIR e as secretarias de promoção da
igualdade, com os conselhos de juventude, com SPM e as secretarias da mulher,
com o movimento negro, com o movimento de mulheres, com o movimento sindical,
com os partidos de esquerda e porque não de direita e principalmente com eles.
Saúde,
educação, economia, juros, desenvolvimento sustentável são pautas do programa de crescimento de um pais que
descobriu a pouco tempo o exercício da democracia. Uma nação que até ontem andava
com as pernas do BIRD, que passou por um processo de pseudo democracia racial
que deixou marcas profundas e indeléveis na construção da identidade da nossa
sociedade, um país que passou por 50 anos de ditadura.
Meu
lado benevolente entende as dificuldades de realizar transformações sociais
tais, que pudessem mudar profunda e radicalmente a raiz do pensamento pequeno
burguês latifundiário que dirige a consciência coletiva desse país, mas de
acordo com um estudo do IPEA que relaciona violência a cor, condição social e
escolaridade “pelo menos 36.735
brasileiros de entre 12 e 18 anos serão assassinados até 2016, em sua maioria
por arma de fogo, em caso de se manter o atual ritmo de violência contra os
jovens. Trata-se do maior nível desde que o índice começou a ser medido em 2005,
quando a taxa era de 2,75 adolescentes assassinados por cada mil.” E esses
dados não tem haver só com ações afirmativas ou com a reformulação da educação
no Brasil.
Ta na
hora, ou melhor, já passou da hora de transformar a contemplação daquilo que
não nos afeta diretamente em ação concreta e dizermos não ao governo, as
estatísticas e a nós mesmos a essa situação de barbárie.
Eu faço
parte da estatística, mulher, negra, da periferia, que se defende ou sobrevive ao
que a vida tem imposto, mas eu tenho um menino, um moleque, um menino preto
dentro de casa, que brinca descalço no quintal, como tantos outros.
Também por isso eu grito a necessidade de que ele se torne um Homem Negro, eu choro a dor de outras mães que viram seus meninos, tão pretos quanto meu, não mais brincarem nem sonharem muitos menos se tornarem Homens Negros, porque a sociedade em que eles estão inseridos normalizaram as condições em que eles são expostos diariamente, simplesmente por serem são oriundos de um pensamento coletivo consciente ou não que transpôs a senzala para a favela.
Também por isso eu grito a necessidade de que ele se torne um Homem Negro, eu choro a dor de outras mães que viram seus meninos, tão pretos quanto meu, não mais brincarem nem sonharem muitos menos se tornarem Homens Negros, porque a sociedade em que eles estão inseridos normalizaram as condições em que eles são expostos diariamente, simplesmente por serem são oriundos de um pensamento coletivo consciente ou não que transpôs a senzala para a favela.
Minha
inquietação é saber quando esse assunto será colocado na pauta ou agenda prioritária
da sociedade e do poder publico, não só pra que meu menino possa concretizar
seus sonhos, mas para a sociedade reencontrar o sentido principal da
existência, aquele que para além da cor das pessoas.
“Cada negro que for, mais um negro virá, para lutar com
sangue ou não...”
T.