quarta-feira, 30 de abril de 2014

Muito Além da Cor



“Há um menino, há um moleque, morando sempre no meu coração...” Era um menino que gostava de bola, de pipa, de geladinho, de correr pelo quintal e que num momento de abastança ganhou uma bicicleta e fez do mesmo quintal um mundo a ser desbravado sob duas rodas, contudo, aprendeu cedo que o portão era o instrumento limitador da sua liberdade.

Cresceu o menino. Hoje um homem que atravessou o portão e se deparou com instrumentos muito mais cruéis pra limitar ou anular sua liberdade, do que aquele simples portão. Hoje vestido de sobriedade, pouco mostra os dentes, já que na cultura popular: preto que muito ri ta de onda é malandro ou coisa do gênero. Do quintal a ser desbravado, ficou a ilusão de liberdade.

Quis se dedicar aos estudos, mas trabalhar se fez imperioso. Foi ajudante de pedreiro, entregador da venda do seu Manoel, limpou para brisa no farol, fez carreto na feira, entre outros biscates. Nos poucos intervalos que achava lia umas revistas velhas, pra não se desacostumar das letras. Sim porque com muito esforço terminou 2º grau, com números era bom, aprendera novo fazer o troco quando nas idas e vindas à venda, pra sua velha e negra mãe.

Passou longe do crime ou porque tinha medo de morrer ou porque queria postergar a morte. Desde cedo ouvira falar que na linha de frente da violência estavam os meninos pretos, então pelo sim pelo não era melhor andar dentro das linhas estabelecidas. Bem via os outros meninos desfilando de Nike, Onbongo, algumas vezes considerava a possibilidade, mas imediatamente se dava conta que confirmar as estatísticas não era uma boa ideia.

Virou doutor, mas continua sendo parado pela policia e evita chegar em casa depois das 23 horas.

Quisera eu essa historieta fosse uma ficção, ledo engano ela narra a vida de Joaquins, Joses, Albertos e tantos meninos que vivem nas grandes capitais onde a policia entra sem avisar ou nos rincões do  país onde a fome também inibe a possibilidade de sonhar.

Como já se cantava nos anos noventa “era só mais um Silva que a estrela não brilha...” na verdade hoje em dia, essa estrela não precisa brilhar, ela só precisa permanecer viva e não no céu, mais em terra firme, onde seus sonhos possam ser concretizados ou pelo menos sonhados.

Nos dois últimos meses os casos de racismo e violência contra mulheres e jovens negros, tomaram conta não só das delegacias, mas das capas de revistas e dos programas de TV: a revista Trip pergunta onde esteve a beleza da mulher negra, a TPM de como é difícil ser mulher negra no Brasil, a Placar fala do assassinato envolvendo o goleiro Bruno e sua namorada Elisa Samudio, as redes sociais bombaram sobre o caso Claudia, (aquela mulher que teve o corpo arrastado por um carro de policia), Regina Casé em seu último programa expõe toda dor de seu elenco, após um de seus bailarinos ter sido brutalmente assassinado e a cereja do bolo, Jô Soares distribui bananas na abertura do seu programa em alusão a atitude do jogador Daniel Alves, vitima de racismo em campo.Para tudo! Eu vou descer pra não ficar aqui mais muitas laudas, falando de quantos morreram e quantos ainda vão morrer enquanto a gente banaliza a violência transformando-a em espetáculo.

A pergunta que me suscita a alma, que inquieta minha ignorância é o que mais precisa acontecer pra gente acordar e perceber que vivemos números de morte maiores do que na II Guerra Mundial, que a guerrilha esta instaurada e que o conjunto da sociedade esta em risco. A vida perdeu o sentido e o valor, ou melhor, a vida daqueles que são denominados por não brancos, ou seja, quando o recorte das mortes recai sobre gênero e raça, os dados são inacreditáveis.

A sociedade brasileira tem trabalhado com a lógica fabril do capitalismo em relação às vidas que são ceifadas por conta do racismo e da violência. Claro que a ausência do poder publico, traduzido em lazer, esporte, educação, saúde e ações afirmativas também é responsável pela situação de calamidade que o Brasil vive em relação ao aumento desenfreado da violência, mas também é preciso levar em consideração que essa discussão não esta na agenda do estado enquanto elemento norteador do seu crescimento, nem na pauta das discussões sociais enquanto elemento que compõe uma serie de outros assuntos prioritários de reivindicações.

Então eu pergunto: Aonde falaremos sobre isso? Nos velórios. Nas missas de 7º Dia. Nas passeatas de protesto. Com a fé característica do povo brasileiro, de que dias melhores virão, como diria minha mãe.
Faz parte, mas eu particularmente preferiria debater esse assunto em âmbito nacional, nas esferas federal, estadual e municipal, com ministério da justiça e secretarias de segurança publica, com a SEPIR e as secretarias de promoção da igualdade, com os conselhos de juventude, com SPM e as secretarias da mulher, com o movimento negro, com o movimento de mulheres, com o movimento sindical, com os partidos de esquerda e porque não de direita e principalmente com eles.

Saúde, educação, economia, juros, desenvolvimento sustentável são pautas do  programa de crescimento de um pais que descobriu a pouco tempo o exercício da democracia. Uma nação que até ontem andava com as pernas do BIRD, que passou por um processo de pseudo democracia racial que deixou marcas profundas e indeléveis na construção da identidade da nossa sociedade, um país que passou por 50 anos de ditadura.

Meu lado benevolente entende as dificuldades de realizar transformações sociais tais, que pudessem mudar profunda e radicalmente a raiz do pensamento pequeno burguês latifundiário que dirige a consciência coletiva desse país, mas de acordo com um estudo do IPEA que relaciona violência a cor, condição social e escolaridade “pelo menos 36.735 brasileiros de entre 12 e 18 anos serão assassinados até 2016, em sua maioria por arma de fogo, em caso de se manter o atual ritmo de violência contra os jovens. Trata-se do maior nível desde que o índice começou a ser medido em 2005, quando a taxa era de 2,75 adolescentes assassinados por cada mil.” E esses dados não tem haver só com ações afirmativas ou com a reformulação da educação no Brasil.

Ta na hora, ou melhor, já passou da hora de transformar a contemplação daquilo que não nos afeta diretamente em ação concreta e dizermos não ao governo, as estatísticas e a nós mesmos a essa situação de barbárie.
Eu faço parte da estatística, mulher, negra, da periferia, que se defende ou sobrevive ao que a vida tem imposto, mas eu tenho um menino, um moleque, um menino preto dentro de casa, que brinca descalço no quintal, como tantos outros.

Também por isso eu grito a necessidade de que ele se torne um Homem Negro, eu choro a dor de outras mães que viram seus meninos, tão pretos quanto meu, não mais brincarem nem sonharem muitos menos se tornarem Homens Negros, porque a sociedade em que eles estão inseridos normalizaram as condições em que eles são expostos diariamente, simplesmente por serem são oriundos de um pensamento coletivo consciente ou não que transpôs a senzala para a favela.

Minha inquietação é saber quando esse assunto será colocado na pauta ou agenda prioritária da sociedade e do poder publico, não só pra que meu menino possa concretizar seus sonhos, mas para a sociedade reencontrar o sentido principal da existência, aquele que para além da cor das pessoas.
“Cada negro que for, mais um negro virá, para lutar com sangue ou não...”
T.