sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Meu filho brinca de boneca.

E tem mais, ele lá do jeito dele, dobra roupa, coloca a toalha no varal de chão depois do banho e guarda os brinquedos depois usa-los. Quando me descuido num ninja desses que criança dá, lava a cueca no chuveiro. confesso normalmente não deixo, afinal ta faltando água no mundo. Ele também tira o prato da mesa e coloca dentro da pia. Você deve se perguntar: Um adolescente certamente? Não meu bem, ele tem cinco anos.

Tudo isso porque hoje alguém me disse: Mudo meu nome pra Josefina se Davi pega numa boneca?

Pode procurar o cartório meu amigo. Porque ele brinca e se diverte. Té e Bê as filhas da vizinha que o digam. Eles dividem as tarefas da casa e quando se cansam jogam bola, andam de skate e se embolam pela areia da construção. E, diga-se de passagem, isso não é uma questão de gênero, opção sexual, transexualidade ou qualquer variação dessa gama de teses e vivências  que dizem respeito à construção da imagem e identidade de uma pessoa. Por hora eles são crianças meu amigo, apenas e tão somente crianças.

Fui grosseira em responder que a maldade e principalmente o preconceito estão nos olhos de quem vê. Que hoje os rapazes que queimam índio na rua ou amarram outros rapazes no poste ou ainda espancam homossexuais/ transexuais na rua, são os mesmos meninos que ontem fizeram dos braços a continuidade do controle remoto, que não sabem a diferença entre o sofá e a mesa da cozinha ou onde ficam as gavetas. Que homens não batem em mulheres só porque são boçais, mais principalmente porque tiveram uma educação machista.

A sociedade enxerga o homem negro de maneira bastante distorcida do ponto de vista da construção da sua identidade emocional e sexual. Aos homens negros é dada a obrigação do maior pênis da galera e consequentemente o melhor desempenho na cama, o pegador. Infelizmente a maioria deles se encontra nessa pecha e segue afirmando sua autoestima nesse  pilar social enraizado no subconsciente de uma sociedade que trás a na veia a herança escravocrata. Trazendo pra si enganos, solidão, desilusões e outros corações em desalinho. Tudo isso somado a violência da polícia, a falta de oportunidades e a dificuldade de se enxergar, límpido e transparente, pelos próprios olhos, sem a nódoa dos olhos do opressor.

Um dia ele me disse que queria ser menina. Eu me assustei e perguntei por que dessa vontade, ele me contou que um dia ele caiu na escola e à professora soprou o lugar da batida dizendo  que não era nada e no dia que uma das meninas caiu, a professora a pegou no colo, beijou e ficou com ela no colo até que ela parasse de chorar.

Que educação é essa que já na infância, dita quem pode e quem não pode ser cuidado? Que sociedade é essa que oferece a meninos as pedras e a meninas as flores? Que porra de mundo é esse que me diz todo dia que meu filho só vai ser homem se ele coçar o saco e cuspir no chão?

Crianças precisam ser respeitadas, amadas e acolhidas na sua pueril, frágil e delicada essência infantil e isto esta para além das nossas expectativas para elas ou daquilo que consideramos politicamente correto, leia-se cis-gênero-hetero-normativo. Essa complexa tarefa de equacionar no dia a dia Amor e Limite é que traduz a difícil arte de educar, será essa atitude que ira fortalecer sua identidade e realçar as melhores facetas da sua personalidade, definindo  de forma tácita seu caráter.

Meu filho é um menino negro, meigo e educado, que se orgulha disso. Ele insiste ajudar a mim e a qualquer outra pessoa que ele ache que precisa de uma mãozinha. Ele chama o mendigo que mora lá na rua pelo nome: Oi Zé! Quando saio correndo com ele, na pressa das nossas manhãs pra cumprir nossos horários, já me atrasei porque ele foi dividir o pão com um vira lata com cara de faminto. Ele não tem medo de escuro, gosta de historias antes de dormir e é a criança mais feliz do mundo, quando passamos a noite vendo filmes embolados nas cobertas esparramadas pelo chão da sala.

Ele é negro e acha isso “massa”. Estamos tentando deixar o cabelo crescer para trançar. Não fosse pegar piolho na escola, já teria rolado e ia ficar lindo. Ele joga capoeira. Gosta de rap e da batida da Black Music. A periferia tem sido um lugar de gentes de todas as cores, trejeitos e identidades, onde ele pode se reconhecer e vivenciar as diferenças como parte do seu cotidiano.

Desde que as circunstancias me levaram a cria-lo sozinha, me esforço para que essa educação seja antes de tudo inclusiva, que possa torna-lo um homem consciente de si em primeiro lugar, o que implica ser orgulhoso de sua raiz “in África” e ainda que ele seja capaz de se sobrepor  ao machismo ou ao pensamento estruturante de uma sociedade opressora, a ponto de se sensibilizar e engrossar o coro que luta e defende que somos livres para fazermos as escolhas que quisermos e que cor, raça e sexo não podem ser elementos paralisantes para alcançar o céu.

Se as bonecas contribuírem para isso, “voalá”!


T.

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