E tem mais, ele lá do jeito dele,
dobra roupa, coloca a toalha no varal de chão depois do banho e guarda os
brinquedos depois usa-los. Quando me descuido num ninja desses que criança dá,
lava a cueca no chuveiro. confesso normalmente não deixo, afinal ta faltando
água no mundo. Ele também tira o prato da mesa e coloca dentro da pia. Você
deve se perguntar: Um adolescente
certamente? Não meu bem, ele tem cinco anos.
Tudo isso porque hoje alguém me
disse: Mudo meu nome pra Josefina se Davi
pega numa boneca?
Pode procurar o cartório meu
amigo. Porque ele brinca e se diverte. Té e Bê as filhas da vizinha que o
digam. Eles dividem as tarefas da casa e quando se cansam jogam bola, andam de
skate e se embolam pela areia da construção. E, diga-se de passagem, isso não é
uma questão de gênero, opção sexual, transexualidade ou qualquer variação dessa
gama de teses e vivências que dizem respeito
à construção da imagem e identidade de uma pessoa. Por hora eles são crianças
meu amigo, apenas e tão somente crianças.
Fui grosseira em responder que a
maldade e principalmente o preconceito estão nos olhos de quem vê. Que hoje os
rapazes que queimam índio na rua ou amarram outros rapazes no poste ou ainda
espancam homossexuais/ transexuais na rua, são os mesmos meninos que ontem
fizeram dos braços a continuidade do controle remoto, que não sabem a diferença
entre o sofá e a mesa da cozinha ou onde ficam as gavetas. Que homens não batem
em mulheres só porque são boçais, mais principalmente porque tiveram uma educação
machista.
A sociedade enxerga o homem negro
de maneira bastante distorcida do ponto de vista da construção da sua
identidade emocional e sexual. Aos homens negros é dada a obrigação do maior
pênis da galera e consequentemente o melhor desempenho na cama, o pegador.
Infelizmente a maioria deles se encontra nessa pecha e segue afirmando sua autoestima
nesse pilar social enraizado no subconsciente
de uma sociedade que trás a na veia a herança escravocrata. Trazendo pra si
enganos, solidão, desilusões e outros corações em desalinho. Tudo isso somado a
violência da polícia, a falta de oportunidades e a dificuldade de se enxergar,
límpido e transparente, pelos próprios olhos, sem a nódoa dos olhos do opressor.
Um dia ele me disse que queria
ser menina. Eu me assustei e perguntei por que dessa vontade, ele me contou que
um dia ele caiu na escola e à professora soprou o lugar da batida dizendo que não era nada e no dia que uma das meninas
caiu, a professora a pegou no colo, beijou e ficou com ela no colo até que ela
parasse de chorar.
Que educação é essa que já na
infância, dita quem pode e quem não pode ser cuidado? Que sociedade é essa que oferece
a meninos as pedras e a meninas as flores? Que porra de mundo é esse que me diz
todo dia que meu filho só vai ser homem se ele coçar o saco e cuspir no chão?
Crianças precisam ser
respeitadas, amadas e acolhidas na sua pueril, frágil e delicada essência
infantil e isto esta para além das nossas expectativas para elas ou daquilo que
consideramos politicamente correto, leia-se cis-gênero-hetero-normativo. Essa complexa
tarefa de equacionar no dia a dia Amor e Limite é que traduz a difícil arte de
educar, será essa atitude que ira fortalecer sua identidade e realçar as
melhores facetas da sua personalidade, definindo de forma tácita seu caráter.
Meu filho é um menino negro, meigo
e educado, que se orgulha disso. Ele insiste ajudar a mim e a qualquer outra
pessoa que ele ache que precisa de uma mãozinha. Ele chama o mendigo que mora
lá na rua pelo nome: Oi Zé! Quando
saio correndo com ele, na pressa das nossas manhãs pra cumprir nossos horários,
já me atrasei porque ele foi dividir o pão com um vira lata com cara de
faminto. Ele não tem medo de escuro, gosta de historias antes de dormir e é a
criança mais feliz do mundo, quando passamos a noite vendo filmes embolados nas
cobertas esparramadas pelo chão da sala.
Ele é negro e acha isso “massa”. Estamos tentando deixar o cabelo
crescer para trançar. Não fosse pegar piolho na escola, já teria rolado e ia
ficar lindo. Ele joga capoeira. Gosta de rap e da batida da Black Music. A
periferia tem sido um lugar de gentes de todas as cores, trejeitos e
identidades, onde ele pode se reconhecer e vivenciar as diferenças como parte
do seu cotidiano.
Desde que as circunstancias me
levaram a cria-lo sozinha, me esforço para que essa educação seja antes de tudo
inclusiva, que possa torna-lo um homem consciente de si em primeiro lugar, o
que implica ser orgulhoso de sua raiz “in África” e ainda que ele seja capaz de
se sobrepor ao machismo ou ao pensamento
estruturante de uma sociedade opressora, a ponto de se sensibilizar e engrossar
o coro que luta e defende que somos livres para fazermos as escolhas que
quisermos e que cor, raça e sexo não podem ser elementos paralisantes para
alcançar o céu.
Se as bonecas contribuírem para
isso, “voalá”!
T.